quinta-feira, 7 de abril de 2011

Revista Raça Brasil - Brincando de construir a autoestima

A indústria cultural e de brinquedos começa a descobrir a importância de oferecer aos pequenos as referências que espelham as nossas raízes africanas

Lúcia, Joyce e Cristina, da Preta Pretinha. Bonecas com estilo próprio  

Brincadeiras infantis funcionam como uma espécie de treino para as crianças apreenderem e tirarem suas próprias conclusões sobre o mundo que os cercam, fazerem suas experiências e se prepararem para viver mais tarde, com desenvoltura, situações do mundo real. Acontece que até alguns anos era raro encontrar na extensa lista de produtos culturais ou de entretenimento voltados para os pequenos, exemplos que trouxessem a figura do negro como protagonista e representado de forma positiva. Esta realidade já começou a mudar. A Barbie é a boneca mais vendida no mundo e há cinco décadas encanta meninas em praticamente todo o planeta. Em maio, as garotas brasileiras terão também uma versão com características afro. A linha atual, lançada nos Estados unidos em dezembro e batizada de So In Style, foi especialmente desenhada para reproduzir algumas características típicas dos negros, como o nariz um pouco mais largo, lábios carnudos e bochechas proeminentes. "Criei esta boneca porque percebi, como mãe de uma menininha de 7 anos, que havia uma lacuna de mercado a ser preenchida. Quis que minha filha tivesse uma boneca negra que se assemelhasse a ela. Esta nova linha é única, à medida em que reflete as características estéticas da comunidade negra e deve nos ajudar a reiterar que ser negro é lindo", afirma Stacey McBride-irby, designer da Mattel há 12 anos. Stacey revela que, além de realizar um sonho pessoal, ela e a empresa foram sensíveis aos apelos de mulheres da comunidade negra norte-americana, que demonstravam o anseio de ver modelos da famosa boneca com as quais elas próprias e suas crianças pudessem se identificar.


Exemplo brasileiro
Há 10 anos, a empresária Antonia Joyce Venâncio e suas duas irmãs tiveram a iniciativa de abrir a loja Preta Pretinha, com simpáticas bonecas de pano - a maioria delas negras e outras com características asiáticas. "Começamos o negócio porque queríamos fazer uma boneca referenciada em nossa própria família e nas bonecas que nossa avó criava para nós. Até então, as disponíveis nas lojas passavam longe do padrão das crianças brasileiras e as poucas opções negras eram estereotipadas, muitas vezes de olhos esbugalhados e roupinha de chita, características distantes da nossa realidade", relata Joyce. Ao longo de uma década, a loja cresceu e tem entre seus itens um amplo leque de diversidade - de bonequinhas paraplégicas ou anãs, até outras com síndrome de Dowm - muitas delas feitas de vinil (material semelhante ao plástico). Só não muda o que Joyce e suas irmãs têm em mente: não basta fabricar modelos mais bonitos; é preciso instigar o diálogo nas famílias e na sociedade no sentido de valorizarem as qualidades da raça, tratando suas peculiaridades com naturalidade e a rica bagagem da cultura afro-brasileira com respeito. "A menina vai carregar sua bonequinha na rua, na escola e em algum momento será questionada. Ela precisa se sentir segura para admitir que a boneca é diferente sim, porém se parece com ela, e por isso é bonita", explica Joyce.
Trata-se de uma convicção e de um tipo de raciocínio nem sempre construídos em casa. Conforme avalia a empresária, quando isto falta, independentemente da condição sócio-econômica da família, é como se faltasse uma pedra fundamental na autoestima da criança. Para ilustrar a situação, Joyce conta que um dia entrou na loja um rapaz negro, engenheiro e aparentemente bem-sucedido. Encantado com as bonecas, resolveu dar uma de presente para a filha. Quando a levou à loja, alguns dias depois, para que escolhesse, a garota ficou meio perdida diante das bonecas. A mãe, dona de casa e também negra, sugeriu então que a menina levasse uma boneca branca. Temia que se ela levasse um modelo diferente, a filha passasse por algum constrangimento na escola (uma instituição de alto nível e frequentada em sua maioria por crianças brancas). "Vi que o pai ficou um tanto frustrado e resolveu levar duas bonecas, a que a menina escolheu e a que ele realmente queria dar para ela."
A psicóloga e escritora Dora Lorch, autora do livro Como Educar sem Violência, entre outros, também chama a atenção para a importância de os pais, a partir do diálogo familiar, construírem a autoaceitação da criança. "Lembro-me bem de um casal, cuja mulher era loira, que resolveu adotar duas irmãs negras. Eles as tratavam sem nenhum preconceito, mas certa altura ficou evidente a dificuldade das meninas de lidarem com sua negritude, pois o modelo que tinham era a mãe branca". Seu conselho é que os pais aprendam a valorizar atributos individuais da criança e não apenas atributos físicos ou talentos natos, como o dom para a música, para os esportes, a beleza, mas também a valorização da capacidade de se esforçar e se desenvolver como pessoa, por exemplo, por meio do estudo e do trabalho. "Apontar exemplos como o ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, que não se contentou em ter o dom da inteligência e batalhou por seu espaço, é dar à criança o direito de pensar: eu também sou negra e eu também posso conseguir".


 
 
"SÃO VÁRIOS OS ELEMENTOS NECESSÁRIOS A ESTA FORMAÇÃO, MAS EXISTE SOMENTE UM QUE ALICERÇA E DÁ BASE DE SUSTENTAÇÃO PARA DEMAIS: O AMOR, ESCRITO VIVIDO"





Princesa dos contos de fada 

Para crianças, é inevitável muitos exemplos virem da ficção. O mais recente sucesso da Disney Filmes, a animação A Princesa e o Sapo, chegou às salas de exibição norte-americanas liderando a bilheteria. Superando The Blind Side - um filme sobre futebol americano e estrelado por Sandra Bullock -, arrecadou, de saída, 25 milhões de dólares, 10 milhões a mais que o segundo colocado. A história é uma adaptação do clássico conto para crianças e tem como protagonista a primeira princesa negra da Disney. Além disso, traz como cenário a cidade de New Orleans em pleno florescimento do jazz, mostrando, portanto, toda a riqueza da cultura afro-americana que se desenvolveu por lá. "Eu, como psicóloga, vibro com estas iniciativas, que me servem como ferramentas", diz a psicóloga clínica e organizacional Ana Maria Silva. "Por exemplo, ao trabalhar na clínica com a questão da autoestima, preciso de bonecos negros e hoje tenho facilidade em encontrá-los. A partir disso posso ver como as pessoas se relacionam com sua negritude e, consequentemente, como é sua autoestima. Se a criança tem bonecas negras, é sinal de que, na família, a questão no mínimo começou a ser olhada." 

Ana Maria alerta, no entanto, que a construção da autoestima na criança é bem mais complexa. "São vários os elementos necessários a esta formação, mas existe somente um que alicerça e dá a base de sustentação para os demais: o AMOR, escrito e vivido em maiúsculo. Sabemos que se constrói a autoestima a partir da assimilação e interiorização de como somos amados. Este é o ponto de partida. Se os pais, ao conceberem seu filho, aceitarem verdadeiramente sua vinda, já é um ponto a favor da autoestima da criança". Outros ingredientes são igualmente necessários, como o respeito, a dignidade, a consideração e a admiração dirigidos à criança. Se no decorrer do tempo os pais incentivam e demonstram interesse pelo que o filho faz, estão no caminho certo. Por sorte há muitas formas de demonstrar isso e a mais efetiva não requer nada muito elaborado, nem poder aquisitivo para comprar nada. Basta o olhar, imbuído de afeto.
A designer Stacey McBride-Irby e suas Barbies negras
E na literatura...
Em 1995, a escritora carioca Sonia rosa publicou o primeiro de seus atuais 30 livros, o Menino Nito (Editora Pallas). Até agora, todos são dedicados ao público infanto-juvenil e a autora se destaca por trazer personagens negros ou a temática da cultura afro-brasileira em quase todos eles. A abordagem, no entanto, começou de forma casual. "A vida nos reserva surpresas e eu nunca havia me imaginado como escritora. Mas gostava de contar histórias. Quando escrevi O Menino Nito, a inspiração foi um amigo mulato chamado Francisco, muito bonito, e daí vinha o apelido de Nito, uma corruptela de 'bonito'. Por isso exigi da ilustradora que o personagem fosse um menino negro, algo não usual na época. Mas a história deste menino que engole o choro pode ser comum a todas as crianças e acho importante também existirem personagens negros em situações de conforto", acredita a autora. Ela destaca a importância da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura da áfrica nas escolas brasileiras. "Fiz um curso de quase dois anos na universidade Castello Branco sobre áfrica-Brasil e descobri coisas que ninguém havia me contado sobre a verdadeira história dos negros. Posso dizer que este foi o curso mais importante da minha vida, pois me deu conhecimento sobre mim mesma", comenta. Certamente, deu subsídios a ela para enriquecer seu repertório e criar uma série como Lembranças Africanas e histórias como O Tesouro de Monifa, que trata justamente da descoberta das raízes de uma garotinha afro-descendente depois de receber os escritos de sua tataravô, trazida ao Brasil por um navio negreiro. O livro traz à tona a questão da autoestima e do pensamento, que nunca se escraviza. Hoje os livros de Sonia rosa não são apenas expoentes ou exceções. A autora se alinha com muitos outros escritores de grande valor, como Nei Lopes, Ziraldo, Ana Maria Machado e tantos mais que não se intimidam em demonstrar que nossa maior riqueza cultural está na diversidade.


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